Deixem minha mãe em paz

Jailson é palmeirense desde menino. Sua mãe é corintiana. Avó, santista. Em comum, o universo do futebol. Tudo tão simples e importante como um copo d’água. Deveria ser assim por gerações e gerações da família do goleiro. Sem ninguém se intrometer, nem fazer valer a intolerância. Não há maldade em nenhum deles, a não ser a paixão por um time seja lá qual for a cor do uniforme.

Frequentar os estádios. Torcer, mesmo com o coração partido, também está dentro da ordem natural do futebol. Nada está fora do lugar.

O que espanta, estarrece, é essa mania de se cuidar da vida dos outros. Que culpa tem a mãe se seu time é o Corinthians e o do filho, o Palmeiras? O que se pode fazer se mais que torcedor o filho é o goleiro do rival? Onde está o pecado? Qual o delito?

Quem conhece a história de Jailson deveria pedir desculpas. Sua mãe, tema central de uma matéria da TV Globo no clássico Corinthians 2 x 0 Palmeiras, é uma simples torcedora de futebol como milhares e milhares de outros cidadãos comuns.

Maria Antonia, mãe de Jailson, conhece muito bem o capítulo abaixo.

JAILSON, SENHOR DO DESTINO

Jailson tem 36 anos, é goleiro e negro. Joga no Palmeiras. Goleiros negros não costumam vencer no futebol brasileiro. Maldição vem da Copa do Mundo de 1950 quando Barbosa, o goleiro da Seleção, foi crucificado pela derrota para o Uruguai no Maracanã e sua memória esquartejada por anos a fio até hoje.

Jailson nunca viu Barbosa jogar. Nem precisava. Chegar ao Palmeiras, quase ao fim de sua carreira, sem jamais ter jogado um minutinho na Série A do Brasileirão, já era um milagre. O clube criado pelos italianos nunca teve tradição de abrigar goleiros negros. Tem, sim, história como um academia de goleiros, nenhum deles preto, nem menos preto. Todos brancos. Mas essa história não tem importância agora.

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O que vale dizer é que Jailson Marcelino dos Santos, ainda um garoto apaixonado por futebol a chutar bolas rasgadas na rua em frente sua casa, prometeu a sua avó, que um dia seria goleiro do Palmeiras. Nascido em São José dos Campos, interior paulista, em 1981, cumpriu a promessa já como veterano. Ainda com um capítulo inimaginável. Como um jogador, aos 35 anos de idade, sem ter jogado nem sequer uma partida na Série A, chegaria ao Palmeiras em honra a avó? E ainda mais, goleiro?

Mais dramático impossível. Contratado para ser reserva de Fernando Prass, outro quase veterano vindo do Vasco, Jailson teria poucas chances de cumprir o prometido à avó Dona Nacife Marcelino, beirando os 80 anos. Tudo isso cabe em um libelo do futebol brasileiro, repleto de histórias de desvalidos coroados pela fartura da elite.

Pois bem. Jailson saiu em busca do seu lugar. Pagou caro com uma contusão em 2015 quando Prass era soberano. Entrou na temporada de 2016 na condição de terceiro goleiro. Na hierarquia, primeiro Prass, depois Vagner, contratado do Avaí, e depois Jailson.

Prass quebra o cotovelo a serviço da Seleção Olímpica. Se afasta dos jogos e abre chance a Vagner no Palmeiras. Três jogos, três falhas e insegurança. Cuca chama Jailson, o goleirão negro, meio rechonchudo, que nunca na vida havia jogado na Série A do Brasileirão.

Jailson estreia na 19.ª rodada do Brasileirão 2016 e não sai mais do time. Fecha o campeonato, eleito o melhor goleiro pela CBF naquela temporada, sem ter perdido um mísero jogo em 19 rodadas. Chora quando cede seu posto a Prass na partida de consagração do título contra a Chapecoense. Reverenciado de alto a baixo por seus companheiros e, mais importante, pelos súditos das arquibancadas.

Jailson chora. Ao retirar as luvas, chora de novo. Ao ser abraçado por todos companheiros naquela tarde de domingo, dia 27 de novembro, no Allianz Parque, mistura sorriso de alegria às lagrimas de sentimento profundo. Jailson, um negro e goleiro do Palmeiras, se transformou na grande história do Brasileirão de 2016. Não perdeu nenhum dos 19 jogos que atuou no campeonato.

Vai ser adorado como um gigante do título. Vai ter sua importância, como muitos conquistadores. Depois, relegado a um canto da história do Palmeiras como muitos outros. Simplesmente Jailson, o senhor do destino.

E poderia muito bem colocar ponto final com esse pedido: Deixem minha mãe em paz!