Qatar News #04: Futebol de rua em Mushareib

De noite, não ao dia sob sol escaldante de Doha. De noite quando ar está mais fresco. Meninos jogam bola na rua bem perto da 13 Mushareib, onde estamos hospedados. As traves são duas lajotas de cimento, no tamanho de tijolos. São três contra dois. Bola dura. Pula sem parar no asfalto cinza coberto de poeira. Gritam “hadaf! hadaf! quando a bola passa na linha imaginária entre as duas lajotas. Hadaf, gol em árabe. Se divertem jogando de sandálias, descalços, de calças e até em trajes árabes – aquele roupão branco cobrindo do pescoço até os pés. No futebol dos meninos, trajes não tão brancos assim, mas cinza cor de pó.

Não há plateia. A rua estreita, de pouco mais de 100 metros, é ladeada por um conjuntos de predinhos de três andares pintados de um amarelo sem força. Em frente a rua do “campinho” dos meninos passa outra rua mais cumprida. De um lado um longo muro. No meio do muro, uma portinhola de acesso a um mercadinho minúsculo, abarrotado de comes, garrafas d’água, objetos de limpeza, tudo junto e misturado. Dali brota um cheiro de algum alimento preparado na hora. Cheiro forte. Quase ao lado do mercadinho, uma lixeira pública transborda. E gatos, muitos gatos, perambulam atrás de restos de comida.

Caminhar de cidadãos por aquelas vielas é sem atropelos. Maioria tem calcanhares impregnados de pó cinza quando calçam chinelos. Os que usam calçados também estão empoeirados. Pequenos edifícios, no máximo de dez andares emolduram as ruas vizinhas à 13 Mushareib. Nas calçadas estreitas destinadas aos pedestres, carros estacionados ocupam todo espaço. Enormes SUVs com patente japonesa, coreana, inglesa, alemã… Toyotas, Land Rover, Mercedes, Suzuki… uma porção delas. Pedestres têm de desviar pela rua.

Não muito distante do campinho dos meninos, uma torre alta de mais de 10 metros de altura tem quase no topo seis alto-falantes (antigas cornetas de som). Uma minarete. Todo santo dia ecoam desses alto-falantes orações ao alto. Começam às 5 horas da manhã e se estendem até 6h em intervalos curtos. Depois se repetem ao longo do dia em horários sagrados à religião Islã. Aos não religiosos, soa como trilha sonora do dia-a-dia.

Na porta de entrada dessa minarete, se vê uma placa com os dizeres “Só Para Homens”. Mulher não entra. Homens entram descalços no templo. Deixam seus chinelos à porta e pequena escadaria que alcança a calçada. Uma porção de chinelos dos homens de fé.

Meninos do campinho devem em breve frequentar a mesquita. Por enquanto eles jogam bola até altas horas da noite. A pouco mais de 1km dali, uma avenida corta a paisagem. Carrões a toda velocidade. Do outro lado, a principal estação de metrô de Doha, a Mushareib, um santuário da civilização moderna engolindo e devolvendo gente a rodo de suas escadas rolantes.

Ladeando a estação, Downtown, um centro comercial e lazer bem artificial inspirado em metrópoles europeias. Cenário de cinema onde habitam lojas de grife, restaurantes e cafés destinados a árabes ricos e turistas desavisados. Em Downtown há espaço de sobra para meninos idealizarem seus campinhos de futebol. Parece que não é permitido correr atrás da bola nas ruas cheias de totens dourados, chafarizes, bancos e arbustos.

Hadaf feito com chutes de pés descalços você encontra mesmo é no asfalto empoeirado pertinho da 13 Musharieb. Campinho maior que qualquer estádio da Copa do Mundo 2022. Ali vive a paixão dos meninos por esse tal de futebol.

 

Doha, 9 de dezembro, 2022. Por Luiz Antônio Prósperi


YouTube – Acompanhe cobertura jornalística da Seleção Brasileira e Qatar 2022 no canal Prósperi na Copa: https://www.youtube.com/@prosperinacopa

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