Um Diário Russo (3): Putin corrupto no táxi suspeito

Mulher dorme na avenida em Moscou - foto: Prósperi

Rostov (17 a 19/6)

Desembarco na estação de Glavnisk em Rostov por volta da 1h da madrugada de 17 de junho. Meu destino: Hotel Parus City. Segundo sites de pesquisas de hospedagem, estaria de 2 a 3 quilômetros do centro da cidade. Vou ao encontro de uma voluntária da Fifa, são muitas garotas e garotos com bom inglês para se comunicar com os estrangeiros, no pátio da estacão. Como praxe nesse ir e vir entre estações Rússia afora, pergunto para mocinha como faço para chegar ao Parus City. Naquela hora da noite, diz que o mais adequado é tomar um táxi. Ela liga para uma central e informa que em cinco minutos o táxi estaria na rua de saída dos passageiros. Me deu o número do carro: 696. E mais: um carro branco. Não me lembro a marca. Saio puxando a mala, menos de 15 quilos, e mochila nas costas, credencial da Fifa pendurada no pescoço. Era começo do pânico.

Encosta o carro branco 696, sem identificação de táxi na capota. O 696 aparece na placa ao lado de outros números com menor destaque. Me desce um sujeito de camiseta gasta pelo tempo, bermuda suja, de chinelo e pés encardidos. Boné azul puído enfiado no limite na cabeça. Barba de alguns dias. “Six, nine, six”. Pega minha mala, abre o bagageiro e joga a mala lá entre embrulhos, fardos de garrafas d’água ou sei lá o quê e outras mercadorias não identificadas. Entro no carro e o motorista dá a partida. Seja o que Deus quiser.

Repórter tem mania de entrevistar taxistas assim que chegam em uma cidade para uma cobertura jornalística. Invariavelmente publica trechos da conversa para dar a famosa cor local, como se diz na literatura de uma reportagem. Particularmente não comungo dessa ideia. Até porque muitos taxistas exageram em suas considerações. Às vezes vale a pena publicar suas observações. Pelo menos uma vez cometi  esse “pecado”.

Na Copa do Mundo de 1990 na Itália, a primeira que cobri das 8 da minha carreira, publiquei um relato de um taxista em Palermo. Eu acabava de chegar de um voo de Cagliari para cobrir um jogo da Holanda e tomei o táxi do aeroporto até o hotel. Arrastando um italiano macarrônico perguntei ao taxista se a famosa Máfia Siciliana metia medo nos cidadãos e o que era a Máfia.

A resposta do motorista: “Não mexa com ela, e tudo bem”. Mas o que é a Máfia:

“Você sabe como são essas árvores que grudam nos muros?” , ele me pergunta. Imagino uma dessas trepadeiras de parede. “Sim”, respondo. E ele: “Então, a Máfia é uma dessas árvores. Você planta, a raiz cresce e os ramos tomam conta do muro. Quando você olha, não sabe mais onde está a raiz, que ramo nasceu primeiro. Ela toma conta do muro. Vira uma coisa só. Ninguém sabe onde começa e onde termina. Assim é a Máfia.”

No táxi em Rostov em busca do Hotel Parus City evitei o diálogo com o motorista. Uma que eu não falo russo. Outra que ele também não fala português e eu ainda tinha dúvidas se falava inglês.

Nem cinco minutos no trânsito e o motorista desembesta a falar como se eu estivesse entendendo tudo. Entendi quando perguntou de onde eu era. Brasil, respondi. “Oh, brrraziliaaan, Rrrrio de Janeirrro”, ouvi mais ou menos isso. Emendou com “Ronaldo, Pelé, Ronaldinho Gaúcho”, se entendi bem. Ah, o futebol.

Entramos por uma rua larga, cheia de gente nas calçadas, hotéis de grife, casas noturnas, muita moçada nas calçadas, torcedores brasileiros, suíços, mexicanos…. Imaginei que o Parus City não estaria longe dali.

Diante daquele movimento de pessoas e luzes, o motorista inicia seu tratado político. Um diário russo?

“Putin”, e indica polegar para baixo em desaprovação. “Milharrrride people’s street”, e com gesto indicava que milhares de pessoas dormiam nas ruas da Rússia.

“Putin, Stalin. Corrrupittions. Rrrusssiaa….”, mais uma vez com polegar pra baixo. “Milharrride people’s….” e emenda com gestos de que milhares de pessoas passam fome na Rússia.

E continua com xingamentos, resmungos, reprovando o governo russo, do pouco que consegui entender de sua fala.

O carro avança por ruas agora não tão iluminadas. Estreitas. Começo a me preocupar. Construções antigas, reboques despencando, acanhadas, nada da suntuosidade do centro, cada vez mais distante.

Toca o celular. Motorista atende no viva voz e, pelo tom de quem estava do outro lado, recebia uma bronca ou cobrança por serviço não prestado. Entendo que ele diz que está levando um passageiro brasileiro para o Parus City. E do outro lado: berros.

No início da viagem, a poucos metros da saída da estacão, a voluntária da Fifa havia ligado ao taxista e ele me passou o telefone. Ela queria saber se estava tudo bem comigo, seguro, se o táxi estava no destino. Respondi que sim, até aquele momento.

Agora, depois de mais de dez minutos de viagem e do telefonema suspeito cobrando o motorista, eu implorava por uma ligação da voluntária. Que nada.

A cada farol que o táxi parava aumentava meu pânico. Olhava aquelas ruas com receio de que não chegaria ao meu destino. Numa quebrada à direita, carro lento e vejo na calçada um grupo de cinco a seis rapazes fortões, todos com figurino do Putin no cavalo. Sem camisas, trocando dinheiro ou sei lá o quê, de mãos em mãos.

Taxista não pára de falar. “Give me”… “Memmmmorrrize”… “One dólarrr fooorrr me”, “One dólarrr”, ele pedia. Eu respondia que não, com gestos.

As ruas estavam ainda mais escuras, não via ninguém. Eu perguntava pelo Parus City. Ele respondia com os dedos “cinco minutos”. Passou a implorar “Give me”, “One dólarrr”…

E abriu o jogo. “Cocaína, heroína, acid, afetamina”, emendou com uma droga atrás da outra falando com sotaque russo e inglês misturado. Me ofereceu. Do que entendi, ele me venderia a droga.

Associei a oferta do taxista à ligação que ele havia recebido durante a viagem cobrando por um serviço. Imaginei que jamais chegaria ao meu destino. Aquele taxista, nas minhas elocubrações, me levaria a ser assaltado se não comprasse a droga – um pouco da paranóia brasileira com mais de 65 mil homicídios por ano no país pentacampeão do mundo de futebol.

Repetidas vezes, eu disse não, não… “no drugs”. E, desesperado, perguntava por “Parus City”. Até que o carro ganhou uma estrada mais movimentada e poucos metros depois o taxista estacionou e apontou o dedo: “Parus City”. Enfim, um refúgio. Fachada simpática do hotel, arredores nem tanto.

Desço rápido. Taxista tira minha mala do bagageiro, pago a corrida e ele: “One dólarrr”. Eu não carregava dólares. Disse “spasiba”, peguei a mala com toda pressa do mundo e entrei rápido no Parus City, onde uma atenciosa recepcionista, na verdade a dona do recinto, me aguardava. Protocolo cumprido, enfim chego ao quarto por volta da 2h30. Queria descansar para chegar inteiro na cobertura do jogo Brasil x Suíça, estreia nossa na Copa.

Na Rússia neste mês de junho temos as “noites claras”, como eles chamam. Noites curtas. O amanhecer é antes das 3h da madrugada. Deitei na cama para esperar o dia clarear. Fatigado das 11h de viagem do trem e mais adrenalina no táxi. Nem 30 minutos de cama e o sol bate na janela. Levanto e vou olhar os arredores do hotel. Casebres de madeira aglomeradas em pequenas vielas de terra batida, mato, pneus velhos, algum lixo.

Assustado com a localização do Parus City, ainda da janela, observo uma dupla de guardas caminhando lentamente por uma dessas vielas. Sem armas, apenas com cassetete pendurado na cintura. Conversam tranquilamente. Pareciam guardas de quarteirão de antigamente. Me tranquilizei. Percebi por Rostov mais tarde, assim  como em Sochi, essas duplas, às vezes trios, de guardiães caminhando por tudo que é canto da cidade.

Aos mais antigos, seria o Guarda Belo do desenho animado Manda-Chuva. Aos de hoje são os seguranças privados que circulam de moto de madrugada apitando nas quadradas.

Putin, o corrupto segundo o taxista, espalhou milhares e milhares de “Guardas Belo” pelas cidades russas nesses dias de Copa do Mundo. Futebol também move montanhas.

A história de Brasil x Suíça todo mundo sabe. No dia seguinte, pedi à dona do hotel por um táxi confiável. Em cinco minutos encostou um, plenamente identificado. Partimos rumo à estação onde embarcaria para Moscou.

Quando estávamos a poucos metros da estação, ouço no rádio do táxi uma música que soou bem conhecida. Gravei um vídeo rápido no celular e joguei no YouTube. Por essea nem o Chico Buarque esperava. Moscou me aguardava.

 

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