
São muitos os ensinamentos do mestre Telê Santana. Um dos mais perpétuos é o futebol limpo, bem jogado, mesmo às custas de derrotas marcantes como a da Seleção Brasileira diante da Itália na Copa do Mundo de 1982, quando saiu aplaudido de pé no estádio Sarriá no dia 5 de julho em Barcelona.
Neste 21 de abril de 2016, data que marca os dez anos da morte de Telê, me vem na memória os dias extraordinários que tive o privilégio de conviver com ele quando eu era repórter do Jornal da Tarde. Nunca aprendi tanto sobre as entranhas e o prazer do futebol, entre 1990 a 1994, nas entrevistas, conversas francas e nos treinos e jogos do São Paulo.
Antes de recuperar passagens que tive ao lado de Telê, sou obrigado a revelar que nunca chorei tanto pelo futebol como na Copa de 82. Era um momento especial da minha vida, prestes a entrar em uma redação de um grande jornal.
Apaixonado pelo futebol desde os tempos de menino na minha Guaxupé, fazia parte de uma geração em que os dribles e a arte do futebol eram imprescindíveis. Daí a admiração por aquele timaço do Brasil montado por Telê. Mais que jogadores de futebol, eles representavam um ideal de vida.
Sócrates, mentor da Democracia Corinthiana, e um ícone da esquerda na briga contra a ditadura militar no Brasil. Falcão, a elegância no jogar bola e a majestade de Rei de Roma. Todos queríamos ser Falcão – confesso agora que tinha o pôster dele com a camisa da seleção no meu quarto. Zico, o craque de cima abaixo. E mais uma turma irreverente de extraordinários jogadores.
A identidade que tínhamos com eles e Telê Santana era sem precedentes. Imaginávamos que se aquela Seleção Brasileira vencesse a Copa, o futebol no mundo seria outro. Assim, como se a Holanda tivesse sido campeã no Mundial de 74 na Alemanha – (Falcão comemora o gol de empate contra a Itália).
Como fomos derrotados pela esquadra Azzurra, com o infernal Paolo Rossi, natural a desilusão e o choro nos bares de Guaxupé, mesmo diante da incompreensão da namorada sem atentar ao fanatismo que tínhamos pelo futebol.
Passados pouco menos de dez anos daquele petardo no coração com a derrota na Copa de 82, tive então o primeiro contato com Telê Santana, na época treinador do São Paulo, nos idos de 1990. Eu já era repórter do JT e setorista do Tricolor – para quem não sabe, setorista é o repórter escalado para cobrir o clube todos os dias. (Capa do JT na derrota da seleção de Telê em 82)
E como era prazeroso conviver o dia a dia com Telê, para muitos um rabugento. Não deixava a gente pisar na grama dos campos de treino, não permitia cigarro aceso à beira do campo. Tratava o gramado como um lençol da sua cama. Cuidava de tudo.
Um dia pegou Pintado pelo pé. O volante tinha acabado de ser contratado do Bragantino, de Bragança Paulista, terra da linguiça. Após os treinos, Telê pegava o Pintado para ensinar como bater na bola:
“Pintado, chuta reto, com a bola deslizando na grama.” Pintado batia na bola e ela saía toda torta, a quatro dedos da grama. “Não é assim, Pintado. Você está chutando linguiça, eu quero chute de seleção brasileira, de São Paulo Futebol Clube. É assim que eu quero…” Pegava na bola e batia preciso, com ela deslizando pela grama.
Assim como Pintado, Telê passava fins de tarde, quase noite já, ensinando Cafu a cruzar. Com ele não tinha desculpa, ou executava à perfeição os fundamentos do futebol, ou ia morrer de treinar até aprender.
Fora do campo, costumava pegar no pé dos jogadores, que, digamos, não se comportavam bem. Um dia o mulato Macedo, atacante do São Paulo, apareceu no treino de manhã com o cabelo tingido de loiro. “Macedo, se você aparecer assim no treino da tarde, pode procurar outro time”. De tarde, Macedo apareceu lá com o cabelo distingido.
Implicava quando jogadores compravam carros caríssimos se ainda não tinham adquirido um imóvel para morar. Ele, Telê, morava em um dos apartamentos do CT do São Paulo, na Barra Funda. No estacionamento, deixava estacionada sua Mercedes branca. Sovina como só ele, mandava o roupeiro do time dar uma volta com a Mercedes dentro do CT, apenas para o motor não ficar muito tempo desligado.
Nos últimos meses de 1992, na reta final de preparação do São Paulo para disputar o Mundial de Clubes contra Barcelona, de Joan Cruyff, no Japão, eu e o repórter da Folha, o craque Mario Magalhães, fomos brindados com maravilhosas histórias do mestre Telê.
Tínhamos quase um foro privilegiado a ouvir seus causos do futebol. Telê demonstrava uma cumplicidade para com nós dois. Relatava como era difícil seu dia a dia de jogador no Fluminense nos anos de 1950 tendo de encarar jornalistas como o lendário Nelson Rodrigues. Contava como jogadores se perdiam nos prazeres das noites cariocas e como ele fazia para não cair na tentação e rasgar dinheiro.
As histórias que ele nos contava soavam como aulas de sociologia do Rio e São Paulo dos anos de 1950 aos primórdios de 1960. Espero que o agora escritor Mario Magalhães, autor da magnifica biografia de Carlos Marighella, tenha mais registros daqueles tempos para um eventual ensaio jornalístico.
No campo de jogo, explicava como ninguém, as funções táticas inovadoras que exercia quando era conhecido como o “Fio de Esperança”. E mostrava como os times deveriam jogar em 1992. Não gostava de caneludos. E por isso fazia o São Paulo jogar o fino da bola. (Telê nos seus tempos de Fluminense)
Fora do campo, era um crítico ferrenho dos cartolas que comandavam o futebol brasileiro. Batia pesado em José Eduardo Farah, então presidente da Federação Paulista de Futebol, e seus pares. Não deixava por menos também os dirigentes da CBF. Quantas manchetes me rendeu ao bater de frente com a cartolagem.
Lembro dos dias em que estivemos juntos no Japão, na semana do jogo contra o Barcelona. Telê não falava muito de Cruyff, técnico do Barça e um revolucionário futebol. Sabia que se vencesse Cruyff, seu nome seria ainda mais reverenciado no mundo, mesmo com todo o reconhecimento que teve na Copa de 82.
Quando o São Paulo conquistou aquele Mundial de Clubes, o primeiro da sua história, eu estava ao lado de Telê, dentro do campo em Tóquio. Vi sua alegria. E, poucos minutos depois, na sala de coletivas, me emocionei quando Raí, o capitão do time, dedicou o título a Telê Santana e à geração da seleção brasileira da Copa de 82. Naquele momento, engoli o choro .(Telê no Mundial de Clubes 92 no Japão)
Nos últimos anos de Telê no São Paulo, presenciei um fato raro nos vestiários do Pacaembu em uma derrota do São Paulo. Um repórter havia se desentendido com o treinador. Quase chegaram às vias de fato. Ânimos quase acalmados, sentei-me ao lado de Telê, que, naquele momento, era consolado pelo seu filho Renê.
Ele me disse assim: “Isso é uma injustiça. Ele (repórter) quase me agrediu. O futebol não é isso”. Pela primeira e última vez vi o mestre chorar.
Telê nos deixou há dez anos. O futebol o reverencia sempre e, em especial, nessa data. Pena que só ficam as homenagens. Seus ensinamentos deveriam ser um mantra a todos que comungam da arte do jogo da bola.