Luiz Antonio Prósperi. de Moscou / Rússia
16 de julho 2018
Minha cobertura da Copa do Mundo chega ao fim nesta segunda-feira, de clima ameno em Moscou, depois de quase um mês de sol escaldante nas seis cidades da Rússia que passei atrás do futebol. Percorri de trem 8.128,7 quilômetros em dez viagens (ida e volta) consumindo pouco menos de 130 horas como um “prisioneiro” nos comboios de ferro da RZD, rede ferroviária russa. Uma travessia de aprendizado, pequenos dissabores, e de enorme felicidade, que me levou a lugares nunca antes imaginados. Das janelinhas dos vagões, mesmo em flagrantes instantâneos, como num clic, deu para ver como russos constroem suas habitações, plantam seus alimentos e dividem os espaços. Os grandes rios, a lavoura, cidades-aldeias, cemitérios de pequenas cruzes e mato à beira dos trilhos, pessoas cuidando de seus quintais e hortas, estações suntuosas, estações modestas e muita gente solidária, de pouco sorriso, mas solidária.
Esta é a oitava Copa que cubro in loco, consecutiva. A primeira foi em 1990 na Itália, quando acabava de entrar no Jornal da Tarde, depois vieram as de 1994 (Estados Unidos), 1998 (França), 2002 (Coreia do Sul e Japão), 2006 (Alemanha), 2010 (África do Sul), 2014 (Brasil) e, por fim, 2018 (Rússia).
Remonto a memória para lembrar que nessas andanças nas pegadas do futebol tive o privilégio de conhecer povos e países bem distintos. Seus costumes e cultura. Suas histórias. Da Itália, o orgulho de estar no lugar de origem da minha família paterna e materna. Nos EUA, dias intensos na Califórnia e o primeiro título do Brasil que vi no estádio. França, com tecnologia avançando na produção de notícias, e muito da arrogância de sua gente. Coreia e Japão, como um mergulho no futuro, e o segundo título do Brasil nas minhas retinas. Alemanha, celebração da amizade num imenso esforço dos alemães para mostrar um outro país ainda com marcas profundas da Segunda Guerra. África do Sul, a imagem da alegria de um povo de doloridas lutas e vitórias consagradoras. Brasil, prazer de ver a Copa ser jogada na minha terra. E Rússia, a hora de desmistificar alguns conceitos e respeitar o caminho que o país se propõe a seguir.
As 8 Copas certamente vão virar um livro. Disso tenho certeza e a tarefa está em andamento. Para voltar ao assunto da despedida da Rússia e falar do dia a dia de seus cidadãos, como propõe esse “Um Diário Russo” desde o início, remonto um rápido diálogo com Andrey, estudante russo, não mais de 24 anos, em uma galeria do metrô. Andrey nos abordou, eu e meu filho, perguntando se queríamos ajuda para encontrarmos nosso destino nas estações. Dissemos que sim. E, como muitos russos que encontramos pelo caminho, se dispôs a nos mostrar onde e como deveríamos fazer para chegar ao Mercado Izmaylovsky, um centro popular de centenas de quiosques quadrados de madeira entupidos de quinquilharias chamadas de souvernir.
Andrey deu o caminho. Aproveitamos para perguntar como ele, e os russos em geral, sentiram a Copa do Mundo. As pessoas gostaram, aprovaram o evento? “A Copa em Moscou foi interessante, serviu para trazer mais alegria quebrar a rotina das pessoas. Antes da Copa, as pessoas andavam nas ruas e metrô muito concentradas, compenetradas, só pensando no trabalho, no ir ao trabalho e voltar para casa. Torcedores com camisas de muitos países, bandeiras, festas nas ruas, nos principais centros administrativos da cidade, deram uma alegria que Moscou não está acostumada a viver no dia a dia”.
Outra observação de Andrey chama atenção. “Estamos vivendo o Ano do Voluntário. A cada ano o governo decreta um tema. Já tivemos o ano da sustentabilidade, da educação. Com a Copa estamos vivendo esse voluntarismo. A ideia é que as pessoas ajudem umas as outras no dia a dia”, disse o estudante. Andrey matou a charada. Ele mesmo, ao se propor a nos ajudar no metrô, cumpria a missão de um voluntário expontâneo. Daí me vem na lembrança de quantos cidadãos se propuseram a me ajudar país afora nesses dias de Copa do Mundo. Voluntários.
Com ajuda de Andrey chegamos ao Mercado Izmaylovsky. Ao entrarmos na primeira alameda apertada dos quiosques, um susto: a quantidade absurda de latinos-americanos. Brasileiros aos montes, mexicanos mais ainda aos montes, argentinos, uruguaios, peruanos, colombianos. Claro, chineses. O sotaque espanhol e português muito familiar me pregou outro susto: russos dentro de seus quiosques, ao serem abordados perguntando os preços das mercadorias, respondiam em espanhol. Se habituaram tanto ao enxame de latinos-americanos que rapidinho aprenderam a identificar os valores na língua espanhola. “Matriossskkas, mile e quinhentos rrrublos”, era mais ou menos o que eu ouvia.
Pudera, a Copa do Mundo da Rússia foi antes de tudo dos latinos-americanos. Sem necessidade de visto para entrar no país e registrados no Fan Id (passaporte da Fifa) tiveram privilégios na Rússia. Como os europeus eram obrigados a ter visto de entrada e, por tradição, não comungam muito das ideias dos russos, não se arriscaram a aventurar no país de Putin. Sinal claro se viu no Luzhniki na final da Copa. Havia um pequeno grupo de torcedores franceses no colossal estádio. E olha que era quase uma barbada a França levantar a taça.
Europeus não vieram, hooligans russos não tiveram com quem brigar, sobrou espaço para os latinos-americanos plantarem suas bandeiras, seu jeito espaçoso de ser, sua inútil mania de falar e gritar mais alto que todos.
De minha parte, volto para casa muito satisfeito com que vi e vivi na Rússia. Da Copa em si, assino embaixo o que minha amiga de muitas Copas, se não me engano desde 2002, a espanhola Cristina Cubero, do jornal Mundo Deportivo de Barcelona, disse no domingo: “Que Copa fantástica! Gostei muito. Dos estádios, das cidades, da gente nas ruas. Magnífico. Que país interessante! Amei tudo”, disse Cristina no rápido encontro na sala de imprensa do Luzhniki a menos de uma hora do início da final da Copa da Rússia.
Tudo funcionou. Alguns perrengues ficaram no meio do caminho. Serão facilmente removidos da memória diante do aluvião de novidades e de conhecimento. Da vida fantástica no Metrô de Moscou aos pavores no táxi suspeito de Rostov-Don. Das crianças multiplicadas em Sochi. Dos totens da antiga União Soviética às flores e gatos de Kazan. Do Hermitage de São Petersburgo entupido de chineses ao calor desértico de Samara. Da beleza impávida das mulheres russas ao figurino Putin na maioria dos homens. Da juventude ocidentalizada de jeans rasgados e celulares como uma bíblia nas mãos. Do quase atropelamento por uma patinete motorizada ao tênis gasto e roto de tanto caminhar nessa longa travessia russa. E uma foto, a pedido de duas senhoras russas, do lado do jornalista Cosme Rímoli, parceiro de anos e anos de reportagem, e do meu filho João Luiz nesta segunda-feira. Não perguntem a razão da foto. As duas estavam felizes e talvez se deixaram contagiar pela nossa felicidade.
E não posso deixar de falar do prazer do futebol. De ver a partida esplendorosa de Cristiano Ronaldo na estreia contra a então poderosa Espanha. Do talento dos belgas. Sentir a dor de Messi e dos argentinos de perto, uma torcida ímpar de paixão a uma seleção. A desilusão de iranianos e japoneses que ficaram a escassos minutos da glória. A grande tragédia alemã. Da ilusão dos russos e seus cantos “Ru-ssi-a” a ecoar em todos os estádios. A redentora luta da Croácia e a consagração final da França multirracial em campo.
Confesso, para minha tristeza, a decepção com Seleção Brasileira. Não vai ficar na minha memória, mesmo tendo histórico de acompanhar outras derrotas mais doídas do Brasil nas Copas. A última lembrança que vou levar desse time do Tite são as matrioskas com a imagem de Neymar encalhadas em uma aloja de souvenir na Praça Vermelha nesta segunda-feira de despedida, 16 de julho. Isso diz tudo. E está registrado na última página desse Um Diário Russo.
Leia mais:
Um Diário Russo (1): Crianças Multiplicadas
Um Diário Russo (2): Perdido, virei um Kaspar Hauser em Tyance
Um Diário Russo (3): Putin corrupto no táxi suspeito
Um Diário Russo (4): De patinete em Moscou até as lágrimas de Neymar
Um Diário Russo (5): Lenin não morreu e Doutor Sócrates aparece no trem
Um Diário Russo (6): Sem torcida, Tom Cruise está na Praça Vermelha
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