RedBullização do futebol (episódio 1): Novo estilo de jogo surge de uma empresa

Red Bull Bragantino lidera Brasileirão 2021 Red Bull Bragantino lidera Brasileirão – foto: Ari Ferreira / Red Bull Bragantino

Red Bull Bragantino lidera Brasileirão 2021 após nove rodadas. Chega ao topo do futebol nacional nesta segunda temporada na Série A. E aguça curiosidade de como nasceu o projeto e para onde vai. Veja como tudo começou:

RedBullização do futebol ou como uma marca de bebidas energéticas cunhou o primeiro estilo de jogo que surgiu em uma empresa. Conheça a caminhada da Red Bull rumo à elite do futebol mundial contada em dois episódios pela revista espanhola Panenka em reportagens do jornalista Aitor Lagunas reproduzidas neste News Prósperi. Acompanhe episódio I:

 

No prefácio de seu livro Zonal Marking, o analista inglês Michael Cox esclarece que sua intenção não é escrever “uma história moderna do futebol europeu”. E é bom que o esclareça porque a capa e uma rápida olhada em seu índice nos levam a pensar o contrário. Cox data em 1992 a reinvenção do futebol, algo fácil de combinar: naquele ano, a partir da antiga Copa da Europa a Liga dos Campeões (Champions League) é criada, da ultrapassada Football League nasce a Premier League  (Campeonato Inglês) e um de odioso abuso (devolver a bola às mãos do goleiro) se origina a maior modificação do jogo desde a criação da regra do impedimento. No entanto, após esse ponto de partida, Cox começa a repartir períodos de hegemonia como se fossem peças de dominó: Holanda (1992-1996), Itália (1996-2000), França (2000-2004), Portugal (2004-2008), Espanha (2008-2012) e a Alemanha (2012-2016) se sucederam – para o autor do Zonal Marking – nesse trono imaginário do futebol. O próximo dominador, projeta, será o futebol inglês, convertido em uma espécie de síntese de todos os estilos anteriores.

Mas além da discrepância com alguns desses períodos, é conflitante separar os fenômenos históricos – e o futebol é – em tais segmentos categóricos: normalmente suas fronteiras não estão bem definidas, especialmente quando nem mesmo as fronteiras reais, as dos países, o estão. Tampouco no futebol resta pouco do que foi chamado de “estilos nacionais”. Maurizio Sarri é o catenaccio o que José Bordalás é para o tiki-taka. Em todo lugar há de tudo, e não sabemos se é uma conseqüência da globalização ou se sempre foi assim e a tecnologia apenas nos deu os meios necessários para prová-lo. De qualquer forma, se hoje viajar para Munique, Estocolmo ou Madri resultam em experiências muito mais similares entre si do que há 40 anos, dificilmente o futebol poderia escapar desse processo de homogeneização.

Nesse mesmo prefácio, Michael Cox acrescenta: “Eu rapidamente percebi que essa história não era simplesmente sobre os diferentes estilos de cada país. Foi também sobre como o país dominante no futebol continental e o estilo hegemônico mudam com tanta frequência.” E aqui o peso específico está nas palavras-chave, que não são “país dominante”, e sim “mudança” e “estilo”. Porque isso é o futebol, encarado com grande angular da história: uma idéia triunfa, e como triunfa se expande, e, como se expande, alguém em outro lugar a contraria com uma nova idéia. A tática do WM popularizada pelo Arsenal de entre-guerras e seu treinador, Herbert Chapman, tinha validade mundial de quase três décadas, até que os ‘Magiares Mágicos’ desencadearam precisamente na seleção inglesa de Wembley (3 de junho de 1953). Hoje, a maioria dos casamentos dura muito menos que a WM.

O futebol é encarado com grande angular da história: uma idéia triunfa, e como triunfa se expande, e, como se expande, alguém em outro lugar a contraria com uma nova idéia

Se na sociedade atual se impõe o paradigma da instabilidade, e se acreditarmos no que é tão comum afirmar que o futebol é o espelho da sociedade, concluiremos que a bola também se encontra atolada em uma era de constantes mudanças. Não há linearidade nos eventos históricos porque muito antes de que um processo se acabe, o seguinte já havia começado faz tempo: há períodos de convivência, de transição, de tons de cinza entre o branco que se apaga e o negro que se ilumina. Referências, sejam cronológicas ou geográficas, também se intercambiam com mais facilidade. O futebol nesta década, de 2010 a 2020, alcançou seus mais recentes objetivos globais. Não sabemos quanto tempo poderemos continuar seguindo o jogo da liga em Miami, mas o gol da Supercopa saudita, esse já nos marcou. Nos acostumamos a proprietários asiáticos, que dispensam treinadores a milhares de quilômetros de distância dos torcedores, enquanto jovens torcedores podem acompanhar competições cuja existência para seus pais eram perfeitas – e felizes – desconhecidas. Nesta década, nos acostumamos a carregar um pequeno acesso à Internet no bolso, de forma que a voracidade com que se propaga a informação nos possa absorver todos em sua espiral.

O mesmo imediatismo com o qual vemos uma semifinal da Copa da Noruega em streaming no banheiro é o que permite aos treinadores conhecerem cada vez mais seus rivais. Não em vão esta tem sido também a década da explosão na mídia colocada a serviço de técnicos: analistas, físicos, recuperadores … Você se lembra dos pôsteres de equipes com 23 jogadores, primeiro e segundo treinadores e o presidente? Bem, eles são história. Aborde o treinamento de uma equipe profissional e você verá que há mais chefes do que índios. Claro, apresse-se, porque nesta década também se tornou moda fechar o acesso ao público após 15 minutos de um treinamento. E paradoxalmente cada vez mais clubes se dispõe a se exibir – de maneira controlada – em registros ‘privilegiados’: imagens exclusivas, entrevistas personalizadas e acesso a vestiários, que nesses dez anos perderam seu caráter sagrado para se converter em discotecas surradas de luz neon, vinis com frases motivacionais e assentos Recaro.

O futebol entrou nos anos de 2010 obstinado pela bola e os deixará frenético pelos espaços: do controlo e passo ao roubo e corro

A notícia não é que o futebol está mudando, mas a velocidade com que ele muda. Nesta década, nos acostumamos a notícias como o VAR, os gênios de Messi ou o estilo do ‘Cholo‘ Simeone. Pareciam fenômenos passageiros e, no entanto, é difícil imaginar como seria a nossa vida sem eles. Uma mudança de década é um bom momento para analisar a década de mudanças que deixamos para trás. Então vamos ao jogo.

O futebol entrou nos anos de 2010 obstinado pela bola e sairá deles frenético pelos espaços. Não apenas se prestarmos atenção às propostas de suas equipes referência, aquele o Barça e este Liverpool, mas também das seleções que marcaram uma tendência nesse período: da Espanha de Del Bosque, que foi a de Xavi e Iniesta, a França de Deschamps, que é a de Griezmann e Mbappé. Do controlo e passo ao roubo e corro. Se pode matizar, porque o futebol é grande demais para gerar unanimidades: a cada período o estilo hegemônico sempre convive com outros divergentes, quando não abertamente oponentes. Por isso, no início da década, dissemos que ‘todos os estilos são respeitáveis’ pensando em Mourinho e acabamos nos referindo a Setién.

Do jogo de posição à gegenpressing: parece o trajeto percorrido nos últimos 10 anos. Não são categorias absolutas porque, novamente, o futebol é tão plural que as transborda. O Barça de Guardiola foi letal quando contra-atacava e estável ao pressionar o adversário, da mesma forma que as equipes da Klopp têm evoluído para enfrentar com mais ferramentas o ataque posicional. São características que nos dizem sobre a versatilidade de qualquer grande time, mas a tendência entre os conjuntos de referências mundiais parece clara: em dez anos passou de privilegiar a posse da bola a preferir – e quase provocar – que seja o contrário a quem tenha a bola para que você possa roubá-la.

Em 2004, o jovem técnico de um Mainz recém-chegado na Bundesliga apresentou sua idéia de futebol no semanário Der Spiegel: “Queremos dominar o jogo. Especialmente quando não temos a bola. Queremos que o oponente jogue nas zonas em que estamos interessados. O fato de o adversário ter a bola é o prelúdio do nosso gol. Queremos recuperá-la tão alto que precisamos apenas de um passe para mandar a bola ao gol. Não corremos mais que os outros, mas corremos sem parar.” Impulsionado por uma vitalidade contagiosa, 15 anos depois, Jürgen Klopp aperfeiçoou sua proposta.

A década terminou sem o Liverpool alcançar sua Premier League. Algo me diz que essa será uma das primeiras novidades que trará a década dos 20. Porém, não é uma batalha de galos: não é um Pep contra o Klopp, porque as equipes que querem jogar como Pep ainda são minoria. Todos introduziram o futebol de posição inicial, e aqueles que querem jogar como Klopp são muito mais, mesmo que nenhum deles atinja sua velocidade de execução. E não é um duelo individual porque a prodigiosa década de Klopp (em 2011 ele venceu sua primeira Bundesliga e em 2019 sua primeira Champions), foi acompanhada pelo surgimento de todo um fluxo relacionado à sua ideia de jogo. Em 2012, quando Klopp estava prestes a vencer sua segunda Bundesliga com o Borussia, a Red Bull colocou-se nas mãos de Ralf Rangnick para dar asas ao seu projeto de futebol.

“Queremos dominar o jogo, principalmente sem a bola. Que o rival a tenha é o prelúdio do nosso gol. Queremos recuperá-la tão alto para chegar ao gol com um passe ”, disse Klopp em uma de suas primeiras entrevistas

Dez anos mais velho que Klopp, Rangnick compartilha com o técnico do Liverpool seu passado como jogador de futebol com pouco reconhecimento, suas origens na região de Baden-Württemberg e sua predileção por futebol de posse curta e transições contínuas. Como treinador, Rangnick só triunfara no Hoffenheim, um clube de um milionário que lhe dava todos os poderes. Ele levou o time da segunda divisão para a Bundesliga e se estabeleceu por lá: uma década depois, ainda está na elite. Na temporada 2008-09, o Borussia Dortmund de Klopp visitou o humilde debutante de Rangnick. Caiu por 4 a 1 e sua caída gerou um impacto tal que, no programa oficial de seu próximo jogo em Westfalen, ‘Kloppo’ assinou um artigo para anunciar que o modelo a seguir para o seu Borussia seria o time que acabara de golear.

Em 2012, o dono da Red Bull, outro milionário sem muita idéia do futebol, decidiu reproduzir o que já havia funcionado em Hoffenheim. O que vem a seguir é uma das mudanças mais profundas da última década: um fabricante de refrigerantes sacode o futebol europeu a ponto de classificar, há apenas algumas semanas, duas de suas principais equipes entre as 16 melhores da Champions 2019-2020. Enquanto isso, a aristocracia do continente começa não apenas a pescar em suas redes (casos de Keita, Minamino ou Haland), mas a clonar seu estilo com treinadores de selo da Red Bull (como Marco Rose em Gladbach). Este é o melhor exemplo de como as fronteiras são difusas hoje e como é inútil falar dos “estilos nacionais” aplicados à bola. No início de 2020, a matriz de jogo mais reconhecível no futebol mundial não usa a bandeira de um país, nem o escudo de um time … e sim o logo de uma empresa com times em cinco países e três continentes.

E, atenção especial, que uma fabricante de bebidas energéticas promova um estilo vigoroso, pressão altíssima e ritmo inesgotável é tudo, menos uma casualidade.


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