Luiz Antônio Prósperi – 17 julho 2024 – (08h32)
Galvão Bueno esgoela. “Acabou, acabou! É tetra, é tetra é tetra!”. Abraçado a Pelé, locutor da Globo estava em êxtase. Poucos minutos depois, Dunga levantava a taça xingando meio-mundo. Tudo isso a menos de 200 metros de onde estava nossa equipe do Jornal da Tarde na tribuna de imprensa do Rose Bowl, estádio da final da Copa do Mundo de 1994, em Los Angeles, lotado com 94.194 pessoas. Começava uma epopéia de emoção, pancadaria, sangue, dor e respeito à profissão de repórter contra a nefasta CBF daqueles dias. Há 30 anos.
Acompanhe, caro leitor, relato desse repórter que cobriu a Copa nos Estados Unidos desde as Eliminatórias na América do Sul em 1993 até a conquista dia 17 de julho de 1994 na Califórnia e a triste briga entre o alto comando da CBF e este jornalista:
Antes de a taça ser entregue por Dunga a Romário e depois ao técnico Carlos Alberto Parreira e o treinador dizer aos torcedores nas escadarias do estádio “podem pegar, ela é nossa”, eu já mergulhava nos subterrâneos do colossal Rose Bowl em direção à zona mista, ali na boca dos vestiários, local de saída dos campeões do mundo depois da conquista da Copa. Há 24 anos o Brasil não era campeão depois de dominar o futebol entre 1958 e 1970, quando chegou ao Tri, e de encantar o planeta em 1982 mesmo derrotado pela Itália de Paolo Rossi na Copa da Espanha.
Atmosfera de alívio e orgulho se respirava naquela zona mista no abafado subterrâneo do estádio. Brasil acabava de derrotar a Itália na angustiante decisão por pênaltis e chegava ao Tetra campeão. Minha pauta era colher o depoimento de Parreira, excomungado desde as Eliminatórias em 1993 até a final da Copa de 1994. Meu jornal (Jornal da Tarde , de SP) era implacável com o técnico da Seleção Brasileira. Durante o Mundial nos EUA, abriu uma manchete assim: “Uma seleção tão burra como seu treinador”, acompanhada de uma charge estampando Parreira com orelhas de um asno. Nossa equipe na Copa enviada aos EUA não comungou com essa capa idealizada pelos gestores do jornal na redação em São Paulo.
Toda pressão da mídia, em especial dos chefes de redação do Jornal da Tarde e não da equipe de Esportes, em cima de Parreira não fez o treinador perder a aura de um lorde e educação diante dos repórteres de todos os cantos do país. Eu era tratado com extrema cordialidade pelo técnico da Seleção Brasileira. Diria que Parreira tinha profundo respeito por mim. E era recíproco.
A mensagem de Sinatra
A expectativa antes de o técnico entrar na zona mista, área de entrevistas no subsolo do Rose Bowl, era de um desabafo e um cala-boca de Parreira tirando uma tonelada das costas que carregava desde as Eliminatórias em 93 e da torturante campanha na Copa de 94.
Quando Parreira saiu dos vestiários e se dirigiu até nós da imprensa ouviu a primeira pergunta: “Parreira, você quer fazer um desabafo aos críticos?” Sereno, como sempre, abriu um largo sorriso e disse assim: “Desabafo? Não, apenas ‘My Way’, como Frank Sinatra. Estamos na terra do Sinatra. O que tenho dizer a todos ‘My Way’. Simples. Fiz do meu jeito”.
Eu não conhecia a letra da música interpretada por Sinatra. Numa tradução simples, My Way seria “Fiz do Meu Jeito”. Em algumas traduções da letra da canção aparece “Sigo meu caminho”. Passada a epopéia da Copa, fui ouvir Sinatra e detalhes de My Way. O lorde Parreira dava o famoso tapa na cara dos críticos com luvas de pelica citando a música e Sinatra.
Eu tinha nas mãos um belo material de toda a trajetória do treinador da Seleção Brasileira até aquele momento consagrador. Escrevi a matéria contando todos os detalhes da emoção de Parreira e a citação especial com a canção de Sinatra. Rendeu uma página ao JT, se a memória não me escapa.
Sangue e CBF nefasta
Próximo passo depois de sairmos do Rose Bowll, caminhar felizes da vida por um bosque ao redor do gigantesco estádio até estacionamento, era o Hotel Fullerton, a mais ou menos 40 km do palco da final da Copa em Pasadena. O hotel hospedava a Seleção Brasileira durante toda a semana que antecedeu a decisão do Mundial. Seria lá a confraternização dos jogadores e dirigentes da CBF e de boa parte da imprensa.
Chegamos no hotel em Fullerton no começo da noite daquele 17 de julho de 1994. Havia muita festa, bebidas, samba, uma confraria de jogadores, parentes, amigos, cartolas, torcedores, patrocinadores e muita gente da imprensa tomando conta do saguão do hotel.

Imprensa paulista filho da …
A história começa assim. Em um espaço no saguão reservado aos dirigentes e bajuladores da CBF, os cartolas já bem empolgados pelo efeito do uísque xingavam os repórteres identificados como representantes da imprensa de São Paulo. “Somos campeões do mundo, imprensa paulista de merda. Paulistas filhos da p…”.
Bola Sete, meu anjo da guarda na Copa de 94. (Reprodução/ Chuteira F.C.)
Era o jeito que os dirigentes da CBF encontraram para desabafar em cima da imprensa paulista, apontada por eles como inimiga da Seleção Brasileira pelo tom crítico e ácido da longa cobertura da Copa de 94.
Neste espaço reservado aos cartolas, o fotógrafo Wilson Pedrosa, a serviço do Estadão e Jornal da Tarde, registrava na sua câmera a farra dos dirigentes e os resmungos contra os paulistas.
Marco Antonio Teixeira, na época secretário-geral da CBF, segundo cargo em importância na hierarquia da entidade, já tomado pelos decalitros consumidos de uísque queria impedir Pedrosa de fazer as fotos e ameaçou tirar a câmera do fotógrafo. Marco Antônio é tio de Ricardo Teixeira, o então todo-poderoso presidente da CBF.
Arthur de Almeida (repórter do Estadão e JT, colega de cobertura da Copa, que acabava de fazer entrevista exclusiva com o capitão Dunga a contragosto do presidente da CBF) e eu estávamos fora do cercadinho reservado no hotel destinado aos dirigentes. Acompanhávamos a poucos metros dali as ameaças de Marco Antonio Teixeira ao fotógrafo Pedrosa.
Não pensamos duas vezes. Arthur e eu invadimos o cercadinho quando o dirigente da CBF tentava arrancar a câmera do Pedrosa. Chegamos até o Marco Antonio. Arthur disse ao secretário-geral da CBF: “Deixa nosso fotógrafo trabalhar”. Marco Antonio mirou Arthur e disse: “Você é um babaca! Vai tomar no c…”. Entrei em ação disse: “Aí não. O que é isso?” Marco Antonio olhou para mim e, com dedo em riste, falou raivoso: “Você é outro babaca, filho da p…”
Antes que eu pudesse reagir ao xingamento, Marco Antonio acertou um soco no meu nariz e, no descer do braço, arrebentou o cordão da minha credencial da Fifa de cobertura da Copa pendurada no pescoço. Sangue escorreu. Quando senti o sangue descer do meu nariz, revidei com um soco no rosto de Marco Antonio atingindo seus óculos que se partiram e provocaram um corte abaixo do olho direito do dirigente. Estava armada a confusão.
Bola Sete, Anjo da Guarda
Ricardo Teixeira entrou na pancadaria, seus bajuladores e outros dirigentes também. Um deles tentou quebrar uma garrafa de cerveja na minha cabeça. Fui salvo pelo Bola Sete, animador de torcida contratado pela Brahma, na época patrocinadora da Seleção de muitos jogadores do time de Parreira. O carioca de 220 kg e 1,84m segurou a mão do sujeito que iria espatifar a garrafa na minha cabeça. Foi Bola Sete quem me contou depois do incidente. Bola Sete (foto abaixo com Romário), Anjo da Guarda. Eu não via quase nada, enfurecido com o sangue escorrendo naquela pancadaria geral como nos velhos saloons dos caubóis de Hollywood.

Como é comum em filmes americanos, policiais brutamontes com fardas pretas observavam a pancadaria ao lado do cercadinho no saguão do hotel e só entraram em cena quando a situação parecia incontrolável. Dois deles me pegaram pelo braço, me protegendo, se dirigiram a um dos enormes sanitários do saguão do hotel. Outro policial pegou o Arthur de Almeida pelo braço. No meio daquela confusão, gritaria, quebra-quebra, copos e garrafas se espatifando, fomos conduzidos pelos policiais até o sanitário. Entramos e eles trancaram a porta.
Eu, Arthur e pelo menos dez policiais fechados no sanitário. Eu chorava como uma criança, com muita raiva, enquanto tentava estancar o sangue do nariz com água em uma das pias. Arthur com um celular, quase do tamanho de um tijolo – eram os primeiros aparelhos celulares lançados nos anos 90 –, procurava comunicação com nossos chefes do Estadão e JT.
Quando me acalmei, um policial com patente de superior me disse que eles dariam total proteção para sairmos dali e ainda me levariam até o hotel em que nossa esquipe estava hospedada – era um hotel pequeno em frente ao da Seleção Brasileira do outro lado da avenida.
Policial chefe me disse que, por ser portador da credencial da Fifa, eu seria conduzido com total segurança ao hotel em que estava hospedado, mas não poderia voltar ao local da confusão naquela noite. No dia seguinte, sim. Eu poderia trabalhar normalmente no hotel da Seleção Brasileira e com toda segurança. Mas tinha um detalhe: se eu fizesse uma registro da ocorrência da briga e da agressão, como se fosse um Boletim de Ocorrência, um processo seria instaurado e eu teria de permanecer nos Estados Unidos até conclusão do inquérito, que poderia se arrastar por meses.
Filme Americano
Arthur conseguiu falar pelo celular com um de nossos chefes do Estadão e JT, o jornalista gaúcho Delmo Moreira, relatou o que havia acontecido e comentou a orientação do policial a respeito de um eventual inquérito. Chefes entenderam que não deveríamos registrar a ocorrência nos EUA e providências judiciais contra CBF seriam tomadas no Brasil quando do nosso regresso. Comunicamos aos policiais norte-americanos que não faríamos o registro da ocorrência. Eles entenderam e disseram então que naquele momento nos conduziriam até o nosso hotel.
Quando a porta do sanitário foi aberta, uma multidão de repórteres, a maioria nossos colegas, estava atrás de uma fita de segurança amarrada pela polícia americana. Dali eles não poderiam passar. Repórter José Eduardo Savoia, ex-colega do JT, trabalhava no programa Aqui e Agora do SBT. Quando ele me viu saindo, gritou com microfone em punho: “Prósperi, Prósperi, conta o que aconteceu”. Luzes e câmeras apontadas na minha direção. Uma gritaria geral. Policiais seguravam meu braços, me impedindo de falar com colegas jornalistas.
Policiais não permitiram que eu falasse e foram e me arrastando por corredores do hotel, até ganharmos a cozinha, almoxarifado, garagens e, enfim, sairmos pelos fundos do prédio do hotel – como naquelas cenas de fugas e perseguições comuns em filmes americanos. Arthur e eu ganhamos a companhia do repórter Cosme Rimoli , também do Jornal da Tarde, no comboio de braços dados com os policiais americanos.
Atravessamos a avenida e fomos conduzidos ao nosso hotel pelos policiais. Nos deixaram no pequeno saguão, deram boa noite. “See you tomorrow, ok” e foram embora. Coincidência, nesse mesmo hotel estavam hospedados irmãos e outros familiares de Romário. E não é que o Baixinho apareceu no saguão abraçado por três moças e, numa das mãos, uma portentosa garrafa de champanhe. Romário sorriu e subiu no elevador com as três garotas.
Repórter não é notícia
No dia seguinte, lá estava eu no saguão do hotel da Seleção Brasileira para cobrir a despedida dos campeões do mundo rumo ao Brasil com a taça a bordo e, mais tarde ficamos sabendo, toneladas de muamba no voo do Tetra. Policiais americanos bancaram minha segurança no hotel. No mesmo saguão da pancadaria, fui entrevistado por dezenas de colegas brasileiros e da imprensa internacional a respeito da confusão na noite anterior na celebração da conquista do Mundial.
Não queria ser lembrado naquela Copa do Mundo de 1994 como pivô da pancadaria na noite de festa do Tetra e sim pela minha longa cobertura jornalística daquela campanha redentora da Seleção Brasileira nos Estados Unidos. Infelizmente fiquei marcado por muito tempo por aquele episódio. Tratado como um jornalista corajoso por ter enfrentado no braço os cartolas da CBF. Um repórter nunca pode ser a notícia e sim dar a notícia.
Aquela noite de 17 de julho de 1994 está na minha memória de repórter já se vão 30 anos e vai ficar para sempre. “Acabou, Acabou… É Tetra, é Tetra!”






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