Flamengo, Botafogo, Palmeiras e Fluminense não são tão ricos quanto clubes europeus, mas têm coração e herança, diz reportagem do The Guardian de Londres


Tom Sanderson e Josué Seixas, The Guardian (23 junho) –


Londres – “O cemitério do futebol está cheio de ‘favoritos’”, alertou o técnico do Botafogo, Renato Paiva, no que provou ser o verso mais frio deste verão no calor escaldante dos Estados Unidos. Os empates decisivos do Palmeiras contra o Porto e do Fluminense contra o Borussia Dortmund no

Mundial de Clubes foram suficientes para dar início a uma conversa. Mas o heroísmo dos outros dois clubes brasileiros abalou a forma como vemos o futebol de clubes em todo o mundo

Pela primeira vez desde que o Corinthians surpreendeu o Chelsea em Yokohama em 2012 , quando alguns torcedores brasileiros venderam suas casas e veículos para viajar, o atual campeão da Copa Libertadores derrotou o campeão da Liga dos Campeões. Igor Jesus, fortemente ligado ao Nottingham Forest, marcou o único gol da partida na vitória do Botafogo sobre o Paris Saint-Germain por 1 a 0 no Rose Bowl, em Pasadena, um cenário especial para os brasileiros, já que foi lá que conquistaram a Copa do Mundo de 1994 e homenagearam o recém-falecido Ayrton Senna.

Para não ficar atrás dos rivais cariocas, o Flamengo apagou parte da mágoa da derrota para o Liverpool em 2019 – quando o atacante brasileiro Roberto Firmino marcou o gol da vitória – ao vencer o Chelsea por 3 a 1 e garantir vaga nas oitavas de final. Foi também a primeira vez que um clube brasileiro venceu um time europeu por dois gols de diferença desde que o Vasco da Gama humilhou o Manchester United em 2000 .

“Foi uma vitória marcante, contra um time que dispensa apresentações”, disse o camisa 7 do Flamengo, Luiz Araújo, após a vitória contra o Chelsea . “Tem um sabor especial não só pelo tamanho do adversário, mas também por toda a nossa preparação e dedicação até agora. Merecemos o resultado e queremos mais.”

Flamengo vence Chelsea. de virada no Mundial
Wallace Yan celebra gol nos 3 a 1 do Flamengo contra Chelsea – foto: Fifa oficial

Os veteranos logo nos lembrarão que esta é a ordem habitual sendo restaurada. Ao longo do século XX, times brasileiros frequentemente levavam a melhor sobre os do Velho Continente. Pelé marcou cinco gols na vitória do Santos sobre o Benfica por 8 a 4 em dois jogos na final da Copa Intercontinental de 1962; ele marcou quatro na final do ano seguinte, quando o Santos derrotou o poderoso Milan. Em 1981, o Flamengo goleou o Liverpool na final; e na década de 1990, o São Paulo venceu o “Dream Team” do Barcelona em 1992 e, em seguida, despachou o grande Milan da época no ano seguinte.

Havia argumentos válidos para que o Brasileirão fosse o campeonato nacional mais forte do mundo. No Mundial de Clubes de 2000 – um torneio semelhante ao realizado nos Estados Unidos este ano – os melhores times europeus visitaram o Brasil e foram derrotados com folga. O Manchester United, recém-conquistado a tríplice coroa, e o Real Madrid não se classificaram em seu grupo. Dois clubes brasileiros – Corinthians e Vasco da Gama – disputaram a final.

Apesar das raras vitórias recentes de clubes brasileiros – como o São Paulo vencendo o Liverpool em 2005, o Internacional superando o Barcelona em 2006 e o ​​Corinthians vencendo o Chelsea em 2012 – a maré virou contra eles neste século. Uma geração atrás, quando os clubes brasileiros estavam sob menos pressão para vender seus craques, jogadores como Rivaldo e Roberto Carlos só cruzavam o Atlântico depois de completarem 20 anos, mantendo a liga forte.

Agora, porém, os clubes são financeiramente mal administrados e precisam vender seus melhores talentos por uma ninharia quando ainda são adolescentes. Além disso, o dinheiro dos direitos de TV na Europa e o doping financeiro de clubes estatais aumentaram ainda mais a disparidade.

No Mundial de Clubes, porém, as questões estão sendo decididas entre as linhas brancas e longe das salas de reuniões. “O futebol se joga em campo, 11 contra 11”, diz Araújo. “Temos grandes times no Brasil, todos capazes de enfrentar qualquer time do mundo. O Flamengo sempre entra em campo para vencer, independentemente de quem esteja do outro lado.”

Os fatos não mentem. Os quatro times brasileiros estão invictos no torneio e lideram seus grupos, com 14 gols marcados e apenas quatro sofridos. “As vitórias mostram a força do futebol brasileiro”, afirma o técnico do Fluminense, Renato Gaúcho, que descarta o argumento de que os times europeus estão cansados ​​após uma longa temporada. “Se um clube brasileiro perde, eles dizem: ‘Ah, o futebol brasileiro não chega aos pés do futebol europeu’. Se eles ganham, eles dizem: ‘Ah, o futebol europeu está voltando das férias’. Isso não existe no futebol!”

Ele ressalta que as equipes costumam se reunir no final do ano, quando os clubes brasileiros vêm de uma temporada ainda mais desgastante. “Quando o futebol europeu flagra clubes brasileiros jogando entre 70 e 80 jogos por ano, ninguém dá essa desculpa. Ninguém diz: ‘Ah, a seleção brasileira está cansada’. Quando a seleção europeia os arrasa, aí eles dizem: ‘Ah, não dá para comparar com eles’. O futebol brasileiro vem fazendo um ótimo Mundial, superando adversários poderosos e alcançando resultados. Isso mostra que dinheiro só nem sempre ganha jogos.”

Fluminense 4 a 2 Ulsan – jogo de duas viradas no Mundial de Clubes
Keno e Nonato comemoram gol do Flu na vitória contra Ulsan – foto: Fifa oficial

Sim, não há como competir com os europeus em termos financeiros; eles podem contratar grandes jogadores e formar times muito fortes, mas o futebol se decide em campo. E, em campo, hoje, o futebol brasileiro e o povo brasileiro têm que se orgulhar muito do que os clubes brasileiros vêm fazendo. Quando muita gente não acreditava que isso aconteceria, está acontecendo.

O técnico do Palmeiras, Abel Ferreira, também rejeitou a ideia de que os clubes europeus estejam cansados, dizendo que a “desculpa” do número de jogos é “uma mentira” – e algo com que os clubes brasileiros já tiveram que lidar no passado. “Quando vamos para o Mundial, também estamos no fim da temporada. O Porto tem 50 jogos; o Palmeiras já tem 36. E quando formos jogar um Mundial, teremos mais de 70 jogos. Essas são desculpas.”

Para seu crédito, Luis Enrique e Enzo Maresca não deram desculpas e foram muito gentis na derrota. Mas nem todos foram tão generosos. Marc Cucurella disse que o Chelsea teve dificuldades com o calor e que os reservas do Borussia Dortmund ficaram ridiculamente sentados dentro do vestiário durante o primeiro tempo contra o Mamelodi Sundowns, quando a temperatura era de apenas 30,5°C.

Mauro Cezar , um comentarista muito popular no Brasil, diz que as seleções europeias demonstraram “uma certa arrogância” ao não darem o devido respeito ao torneio. “As seleções europeias entraram neste torneio sem levá-lo tão a sério quanto as de outros continentes. É claro que o calor é um empecilho para elas, assim como o fato de ser o fim da temporada. Mas se elas têm mais dinheiro, melhores jogadores e melhores técnicos, deveriam compensar esses pontos negativos jogando o mínimo para superar adversários que não causaram muita preocupação, pelo menos até o início da competição.”

Flaco Lopez leva Palmeiras ao céu
Flaco Lopez leva Palmeiras ao céu – foto: Fifa oficial

Esses argumentos são válidos, mas não justificam que o Paris Saint-Germain não tenha conseguido marcar um gol contra o Botafogo e mal tenha ameaçado; o Monterey empatado com a Inter; o Borussia Dortmund quase tenha perdido para o Fluminense e sofrido três gols para um time sul-africano; o Porto dominado pelo Palmeiras; e o Flamengo massacrando o Chelsea praticamente o tempo todo. Alegar que a competição não é importante não justifica essa sequência de resultados contra times com investimento muito menor. Não encarar essa realidade é mais um sinal de arrogância.

Araújo, que viu os jogadores do Chelsea de perto em campo, rejeita a ideia de que eles não se importam com o torneio. “Ninguém entra em campo para perder; todos querem ganhar”, diz o atacante do Flamengo. “O jogo contra o Chelsea foi muito competitivo. Todos defendem suas famílias, suas camisas e a torcida que está nas arquibancadas torcendo por eles.”

O técnico do Flamengo, Filipe Luís, que passou a maior parte de sua carreira como jogador na Europa, passando por Atlético de Madrid, Chelsea e Deportivo, acredita que os clubes brasileiros reequilibraram a balança no torneio, mas não conseguem competir com os “oito ou dez melhores clubes” da Europa. “Tirando essa elite, os brasileiros estão no mesmo nível da segunda divisão europeia pela forma como competimos, como entendemos o jogo, como nos adaptamos às condições climáticas e de campo. Essa elite é superior a nós, mas em campo qualquer um pode vencer.”

Como aponta Cezar, a “grande diferença entre a Europa e a América do Sul é o dinheiro”, com o Chelsea investindo sozinho € 1,5 bilhão em seu elenco. “Esse valor equivale às dívidas somadas de vários clubes brasileiros; a desproporção é enorme. Como as ligas europeias têm mais visibilidade global e dinheiro, elas naturalmente atraem os melhores técnicos e jogadores. Consequentemente, são mais desenvolvidas taticamente, tecnicamente e até fisicamente em alguns casos. No entanto, quando um clube brasileiro, como o Flamengo, que derrotou o Chelsea com autoridade, se organiza financeiramente, com bons jogadores dentro da realidade sul-americana, e tem um técnico com uma mentalidade moderna, embora muito jovem e sem muita experiência, o resultado é o que vimos na Filadélfia.”

Estamos apenas na fase de grupos do Mundial de Clubes, mas, seja apenas para arrecadar dinheiro para a Fifa ou para servir de acampamento de férias para as seleções europeias, o torneio teve um propósito inesperado para o Brasil. Permitiu que os brasileiros se orgulhassem da ideia de que nem tudo é sempre melhor fora d’água.

Este é um artigo de Tom Sanderson e Josué Seixas, do The Guardian de Londres.


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