RedBullização do futebol – episódio 2 – Mostra como um executivo austríaco inventou um conglomerado esportivo depois de se tornar milionário. De onde nasceu a ideia de investir no futebol depois do sucesso nos esportes radicais e Fórmula 1. A origem do império, a luta contra paixão dos torcedores e os mentores dos primeiros projetos nos clubes da Áustria e Alemanha. Naquela época não se falava em investir no futebol brasileiro e o Bragantino era uma miragem. News Prósperi reproduz segunda reportagem da revista espanhola Panenka de autoria do jornalista Aitor Lagunas. Acompanhe parte II:
Em 28 de agosto de 2016, já superado o equador desta década que fechamos, a Alemanha sediou um jogo cheio de informações sobre o futuro do futebol. No meio do nada, com uma rodovia e um enorme estacionamento como único contexto, se disputou uma partida impossível em qualquer outra década: o Hoffenheim, time de uma pequena cidade infestada de profissionalismo pelo seu bilionário proprietário, dava bem-vinda à Bundesliga ao RB Leipzig, a grande aposta da marca de bebidas energéticas na super-elite do futebol europeu
O RB já havia se tornado o time mais odiado da Alemanha. Após essa viagem inaugural a Hoffenheim, todas as visitas dos “Red Bulls” aos diferentes estádios da Bundesliga se tornaram um pedágio natural com faixas, gritos e gestos desagradáveis. Em uma partida de copa, os fãs do Dynamo Dresden jogaram a cabeça de um touro em campo. No estádio do Union, os torcedores locais vieram vestidos de preto e ficaram em silêncio por 15 minutos com a “morte do futebol”. Nas pesquisas da Universidade de Braunschweig sobre as antipatias alemãs no futebol, pela primeira vez um clube superou o todo-poderoso Bayern de Munique como o mais odiado. Na pátria do 50 + 1, a lei que protege a propriedade de clubes por seus torcedores, muitos discutiram a legitimidade do RB Leipzig, por mais que seus donos se preocupassem em cumprir a lei.
Inicialmente, as suspeitas em relação ao clube saxão eram motivadas por seu caráter de clube-empresa apenas dissimulado: o RB de sua denominação não respondia às siglas da marca, mas ao Rassen Ballsport – esporte de bola e grama, literalmente – precisamente para não incorrer em um ilícito. A matriz dona de vários clubes em outros países ter comprado um pequeno clube no distrito de Leipzig em 2009, após vagar sem sucesso pelas aquisições da Sankt Pauli ou Munique1860, e começar a inflar com dinheiro a sua filial alemã para subir na hierarquia, não ajudou dissipar suspeitas. No entanto, a brilhante evolução da equipe modificou o tempo verbal em que se conjugava a inquietação do futebol alemão. Rapidamente deixou de incomodar tanto o passado (como o RB Leipzig havia chegado à Bundesliga) e começou a se preocupar mais com o futuro: para que se havia plantado ali?

Após a brilhante estréia do RB Leipzig na Bundesliga, muitos deixaram de se incomodar tanto com o fato de ter chegado à elite do futebol alemão e começaram a se preocupar mais com o que fazer
Para responder a essa pergunta, você precisa viajar para Bangcoc, 1982. Um jovem executivo austríaco de uma empresa de detergente entra em um hotel e pede que algo para se despertar antes de entrar em uma reunião. Acabava de pousar e estava sonolento por causa do jet lag. O garçom serve uma bebida amarga, bastante comum entre trabalhadores e caminhoneiros no Sudeste Asiático. Não tem gás e não é particularmente agradável no paladar: parece quase um xarope dissolvido, mas é realmente eficaz. Dietrich Mateschitz se desperta, embora nem tanto para ver o negócio a que acabava de ser apresentado.
Isso exigirá uma segunda viagem, esta a Hong Kong. No hall do hotel Mandarin, olha uma revista da Newsweek. Seus olhos se detém em uma pequena informação sobre os principais contribuintes ao Fisco no Japão. E de um artigo tão aparentemente anódino salta uma faísca: quando ele lê que uma das maiores fortunas japonesas é proprietária de uma bebida com taurina e cafeína semelhante à que ele experimentou na Tailândia, sua conexão neural começa a se mover como bolinha de um ping-pong. Ele não vai parar até criar sua própria empresa na Europa com a qual vai comercializar uma bebida semelhante. Modifica o sabor, adiciona gás e grandes doses de açúcar, muda o logo e traduz o nome da marca tailandesa: de Krating Daeng (touros vermelhos, em alusão à taurina) passa à internacional Red Bull. Mateschitz, que havia levado 10 anos para se formar em marketing e gestão de negócios, agora se aplica com rapidez e sucesso. Entende que deve ser uma marca jovem, em um segmento completamente novo, e logo a associa ao esporte. O futebol não lhe interessa. Por outro lado, em torno da aventura, da neve e do motor há um valor agregado, uma marca nova e radical. Um ano após o seu lançamento, patrocina sua primeira corrida de montanha. E em 1995, antes de chegar a países como a Espanha, desembarca na Fórmula 1. Em 2000, compra o time de hóquei no gelo de sua cidade, Salzburgo.
A Red Bull quer implementar sua própria filosofia com métodos mais típicos de uma ditadura totalitária do que da cultura esportiva austríaca
Mateschitz investiu meio milhão de dólares. Hoje possui quase 19 bilhões, uma fortuna que só superam outros 52 potentados em todo o mundo. No ano passado, vendeu mais de 6 bilhões de unidades, o equivalente a dar uma lata de Red Bull a todos os habitantes do planeta. É um cara acostumado a vencer e a se envolver no caminho. Assim surgiu o interesse por futebol, através de um bom amigo residente nos Alpes e milionário como ele: Franz Beckenbauer. Em 2005, às vésperas da Copa do Mundo na Alemanha, cujo comitê organizador foi presidido pelo próprio Beckenbauer, Mateschitz entendeu que o futebol era poderoso demais para não entrar nele. Decidiu comprar o Áustria Salzburg. Trocou o nome, mudou as cores, mudou o escudo. Os fãs mais românticos protestaram: “A Red Bull quer implementar sua própria filosofia com métodos mais típicos de uma ditadura totalitária do que da cultura esportiva austríaca”, protestou o então porta-voz dos fãs. “Não há nenhum acordo possível, somos um novo clube: não temos história”, disseram então porta-vozes de torcedores. Houve uma divisão dos fãs mais românticos.

Mateschitz não estava preocupado. Continuou aplicando sua metodologia de negócios e insuflando dinheiro. Em 2006, a equipe terminou em segundo lugar. No ano seguinte, chegou ao primeiro título da liga, com dois velhos conhecidos de Beckenbauer no banco: Giovanni Trapattoni como primeiro treinador, assistido por Lothar Matthäus. Era um Red Bull muito diferente do atual, mas igualmente vitorioso. Com outros três treinadores, a franquia conquista outros três campeonatos até 2012. É então quando Mateschitz entende que chegou a hora de marcar uma linha clara, uma filosofia de jogo de acordo com os valores de uma empresa nova e radical, e se volta para alguém que já havia feito isso com sucesso no passado.
Chama a Ralf Rangnick. Este pede plenos poderes: não quer apenas treinar e sim se tornar o ideólogo do grupo. Seu objetivo não passa apenas por Salzburgo, mas também, e principalmente, pela recente franquia de Leipzig, que neste momento não ascende à terceira divisão alemã. Apenas quatro anos depois, em 2016, Rangnick contemplará desde o palco de Rhein-Neckar Stadion o fim de um ciclo: o RB Leipzig estréia na Bundesliga precisamente ante seu clube anterior, o Hoffenheim, graças a cuja experiência recebeu cargo de Dietrich Mateschitz. Durante esse período, o RB Salzburg levanta três dobletes da Copa da Liga da Áustria consecutivamente. Começa a incorporar jovens jogadores que logo vão gerar benefícios com seus passes a outras equipes (Sadio Mané para o Southampton, Kevin Kampl para o Borussia Dortmund) ou se transfiram internamente para a franquia irmã do outro lado dos Alpes (Ilsanker, Gulacsi, Sabitzer).
E assim, depois de quatro anos à frente do conglomerado de futebol da Red Bull, Ralf Rangnick decide em 2016 que era o momento de invadir a Europa e o mundo.
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