Julgamento de José Maria Marin, ex-presidente da CBF, e mais dois dirigentes do futebol sul-americano na Corte do Brooklyn, em Nova York, no caso de corrupção no futebol, o Fifa-gate, expôs as vísceras do poder do futebol brasileiro e seu tentáculos, nesta primeira semana de depoimentos perante à juíza Pamela Chen.
É uma longa trama que começa nos anos de 1980 com João Havelange, passa por Ricardo Teixeira, J.Hawilla, entidades, dirigentes, redes de TV, agências de marketing e chega até o atual presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, e, claro, a TV Globo.
Vamos começar pelo fim anunciado dessa história, mais precisamente com os depoimentos do executivo argentino Alejandro Burzaco na condição de testemunha da promotoria dos Estados Unidos no julgamento dos cartolas.
Burzaco, controlador da agência argentina de marketing esportivo Torneos & Competencias (T&C) estava acostumado a operar nos porões, quer dizer, nos hotéis cinco estrelas, com a casta de cartolas sul-americanos, todos usufruindo do poder na Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), na época dirigida pelo paraguaio Nicolas Leoz.
Burzaco foi quem revelou como funcionava o esquema de pagamento de propinas na venda dos direitos de transmissão dos campeonatos tutelados pela Conmebol e Copas do Mundo sob o guarda-chuva da Fifa.
Disse com todas as letras na Corte americana que dirigentes graúdos, Julio Grondona, então presidente da Associação Argentina de Futebol (AFA), e seu parceiro Ricardo Teixeira, na época chefão da CBF, recebiam US$ 600 mil anuais cada um. Esse dinheiro era irrigado dos cofres das redes de TV detentoras dos direitos de transmissão dos campeonatos. Na parte que cabe ao Brasil, a rede é a Globo, segundo delatou Burzaco, quem bancava as propinas.
Teixeira e Grondona tinham as rédeas da Conmebol. Direcionavam tabelas das Eliminatórias das Copas do Mundo, arbitragem dos torneios e embolsavam propinas da venda de direitos de transmissão dos campeonatos para as grandes redes de TV dentro e fora do continente.
Quando Teixeira saiu de cena, ao renunciar o comando da CBF em 201, sob suspeita de corrupção, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero assumiram o controle. Por ordem de Teixeira, os US$ 600 mil que ele recebia seriam divididos entre Marin e Del Nero.
“Em abril de 2012, houve uma reunião em Buenos Aires com Del Nero, Marin, Julio Grondona (então presidente da AFA) e Alexandre da Silveira (secretário da CBF), e eu. Ricardo Teixeira não estava, mas falou por telefone com Grondona para explicar que havia renunciado (à presidência da CBF), que Marin e Del Nero o substituiriam e que deveriam ter o mesmo poder que ele tinha na Conmebol. Disse que os US$ 600 mil deveriam ser pagos a eles”, disse Burzaco.
De acordo com relato de Burzaco, “dois ou três meses depois, desta vez no restaurante ‘Tomo 1’, teve um novo encontro em que estavam presentes Marin, Del Nero, Alexandre Silveira, Grondona e Marcelo Campos Pinto (então executivo da Globo) quando informei a eles que tinha mais US$ 2 milhões de propina, dinheiro que Teixeira não havia coletado. Com a benção de Campos Pinto, ficou decidido que os US$ 2 milhões seriam divididos entre Del Nero e Marin.”
A ORIGEM
Vamos então retomar ao fim dos anos de 1980 quando a figura de Ricardo Teixeira é projetada no comando do futebol brasileiro.
Teixeira, genro de João Havelange, é eleito presidente da CBF em 1989. Venceu o pleito abençoado pelo sogro. Naquela época, Havelange presidia a Fifa desde 1974. No seu currículo de cartolaço, a transformação do futebol em um meganegócio internacional e o que tem de pior quando se gira muito dinheiro, a corrupção.
Ao assumir o comando da CBF, Teixeira precisava de imediato de US$ 1 milhão para honrar seus compromissos com presidentes de federações estaduais e dirigentes influentes, o então colégio eleitoral da CBF.
Sem ter onde tirar toda essa grana, recorreu aos ex-repórteres de futebol, o paulista J. Hawilla e o carioca Kleber Leite, na época parceiros na exploração da publicidade estática nos estádios do Brasil. Hawilla e Kleber eram como dois irmãos e gozavam da intimidade de Havelange.
Teixeira fez um acordo com os dois, sempre com a benção de Havelange, e, se arrumassem US$ 1 milhão para quitar a dívida de campanha e ainda injetar dinheiro na CBF, teriam direito a participar dos negócios futuros da entidade.
Hawilla havia montado com muito sucesso uma empresa de marketing esportivo em São Paulo, a Traffic. Kleber tinha a sua no Rio, a Klefer. Juntos, eles bateram à porta da Coca-Cola, uma das principais parceiras da Fifa pelas mãos de Havelange, para patrocinar a Seleção Brasileira e, por tabela, a CBF.
Ao mesmo tempo correram atrás da Pepsi-Cola. Venderam para Pepsi que, se não assumisse o patrocínio da Seleção Brasileira no ano de Copa do Mundo (1990 na Itália), a Coca compraria a ideia. A Pepsi aceitou e fechou contrato de US$ 1 milhão com a CBF.
PORTAS ABERTAS
Teixeira, fazendeiro e executivo do mercado financeiro no Rio, nunca havia se metido com os negócios do futebol. E se ajoelhou aos pés de Hawilla e Kleber. As portas da CBF estavam abertas aos negócios dos dois ex-jornalistas.
Hawilla, mais ambicioso que Kleber, foi vasculhar o mercado de marketing esportivo nas principais entidades de futebol da América do Sul, então sob a tutela de agências de marketing da Argentina. Nessas fuçadas, descobriu que deveria se aliar às concorrentes argentinas e se instalar na Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol).
Ao mesmo tempo, Ricardo Teixeira, por ser presidente da CBF, teria um cargo importante na Conmebol. No grau de relevância da AFA (Associação de Futebol da Argentina), dirigida por Julio Grondona (morto em 2014). Estava formada a parceria mais longeva e talvez mais corrupta, segundo os delatores, do futebol sul-americano.
Grondona e Teixeira assumiram o controle dos negócios da Conmebol, tendo no presidente, o paraguaio Nicolas Leoz, uma peça decorativa.
Grondona, de sua parte, se escorava na agência que deu origem à Torneos & Competencias (T&C). Teixeira tinha na Traffic, do amigo Hawilla, a parceira ideal para explorar os negócios do futebol sul-americano. Para ninguém crescer mais que o outro, a Traffic se juntou à T&C para operar no mercado sul-americano. Nascia a TT&C, que passaria a negociar os direitos dos torneios no continente.
GLOBO, NOVA PARCEIRA
A Traffic já era uma potência do marketing esportivo e cresceu ainda mais quando fechou acordo de patrocínio da poderosa Nike, dos Estados Unidos, com a CBF em 1996. Na época, por uma bagatela de US$ 200 milhões por um contrato de quatro anos renováveis por mais quatro. Foi Hawilla quem levou a Nike para dentro da CBF.
Jorrava dinheiro na CBF, Teixeira e Hawilla eram unha e carne. Faltava ainda um agente importante nessa história: uma rede de televisão para bancar os campeonatos no Brasil, injetar dinheiro nas federações estaduais – que formavam o colégio eleitoral da CBF – e ajudar os clubes brasileiros com a grana alta dos direitos de transmissão dos jogos.
Quem assumiria essa bronca? A Globo, claro.
Maior grupo de mídia do país e detentora da maior fatia publicitária no mercado brasileiro, a Globo crescia nas transmissões do futebol brasileiro. Em 1999, um de seus executivos, Marcelo Campos Pinto, criou um modelo de compra de direitos televisivos de competições esportivas. Claro, formou parceria com Teixeira e a Globo passou a ter os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro, da Copa do Brasil e dos principais Estaduais (Paulistão, Carioca, Mineiro, Gaúcho, entre outros).
O modelo adotado por Campos Pinto seguia as diretrizes que a Fifa usava para vender os fabulosos direitos de transmissão das Copas do Mundo.
Com a Globo subsidiando o futebol brasileiro, tendo a preferência da CBF, federações estaduais e os clubes nas mãos, Ricardo Teixeira se sentia mais seguro para ampliar seus tentáculos na Conmebol e Fifa, na qualidade de membro do seleto Comitê Executivo da entidade, então dirigida por Joseph Blatter, discípulo de Havelange, desde 1998.
TEIAS ESTENDIDAS
Teixeira forte na Conmebol e na Fifa era um campo fértil para a Globo conseguir alguns benefícios na concorrência dos direitos de transmissão pela televisão das Copas do Mundo e principais competições da América do Sul.
Ao poder do futebol brasileiro tudo funcionaria perfeito por décadas e décadas não fosse por um probleminha: a ganância.
Ricardo Teixeira havia estendido seus negócios para fora do Brasil ao se aliar ao espanhol Sandro Rosell, ex-agente da Nike na CBF e presidente do poderoso Barcelona. Surgiram as primeiras denúncias de corrupção na venda de jogos da Seleção Brasileira. E, mais graúda, as suspeitas de compra e venda de votos na escolhas dos países-sedes das Copas do Mundo. Teixeira começava a se encrencar – Rosell, em meados de 2017, seria preso pela Justiça da Espanha.
Hawilla, por sua vez, decidiu ampliar seu império para atuar no mercado dos Estados Unidos. Miami passou a ser a base dos negócios da Traffic e das parceiras, entre elas a T&C de Alejandro Burzaco.
DINHEIRO SUJO
Por descuido ou incompetência desses executivos e dos cartolas ávidos pelas propinas, o grosso do dinheiro sujo dessas negociações passava pelos bancos dos Estados Unidos. A Justiça Americana desconfiou e começou a investigar a origem desse dinheiro. Descobriu que a grana gorda vinha dos negócios de dirigentes e agentes do futebol sul-americano e também de membros importantes da Fifa com residência nos EUA e países da América Central.
Os federais do FBI chegaram em Hawilla, com residência fixa em Miami, e Chuck Blazer (morto em 2016), norte-americano e um dos principais vices-presidentes da Fifa. O castelo começava a se desmoronar.
Quando enquadraram Hawilla, ele delatou todos os cartolas e agentes de marketing envolvidos no propinoduto do futebol. Não poupou nem mesmo seu “irmão” Ricardo Teixeira.
Hawilla havia rompido com Teixeira em 2012 depois que o então presidente da CBF deu a Kleber Leite os direitos de comercialização da Copa do Brasil que estava há uma década com a Traffic. Hawilla também já não tinha mais negócios e parceria com Kleber.
OPERAÇÃO FIFA
Com base nas delações de Hawilla e Blazer, o FBI chegou na rede de corrupção sustentada na sua maioria por dirigentes do futebol sul-americano. Numa ação cinematográfica, em meados de 2015, os federais americanos enjaularam uma penca de cartolas, entre eles José Maria Marin, no primeiro dia de um congresso da Fifa em Zurique. Não pegaram Marco Polo Del Nero porque ele conseguiu escapar e embarcar às pressas ao Brasil – desde então nunca mais tirou pé fora do país.
Por que Ricardo Teixeira não foi preso?
Porque havia renunciado à CBF passando o bastão para Marin, vice-presidente da entidade e a Marco Polo Del Nero. Para quem não sabe, Marin e Del Nero são velhos amigos de comando do futebol paulista. Estavam acostumados a agir na Federação Paulista de Futebol com os mesmos métodos de Teixeira na CBF.
Não por acaso herdaram de Teixeira o recebimento da propina das redes de televisão, Globo entre elas, que era destinada ao presidente da CBF.
Na Corte do Brooklyn nesta primeira semana do julgamento do Fifa-gate, ao contar parte dessa história que testemunhou e foi agente importante, o argentino Alejandro Burzaco expôs as vísceras do poder do futebol brasileiro. Burzaco concluiu que Marin era o homem encarregado dos discursos, o rei. Del Nero era o operador de fato, o gestor do dinheiro, o presidente. E a Globo, segundo Burzaco, uma das fontes de onde jorrava o dinheiro ao propinoduto.
O chão tremeu. O poder do futebol brasileiro e a Globo sentiram o abalo. Difícil projetar se teremos sobreviventes quando J. Hawilla, em prisão domiciliar nos Estados Unidos e obrigado a devolver US$ 151 milhões ao fisco americano, for levado à Corte americana para falar o que sabe.
(reportagem publicada no CHUTEIRA FC – leia mais notícias e análises de futebol)