Junho de 1982 parecia mágico, horizontes se abrindo. Chumbo do ar se esvanecia para dar cor ao país. Céu limpo, dias claros. Havia esperanças e certezas de que um novo rumo estava logo ali na esquina. Novas conquistas. Havia um time de futebol a embalar todos os sonhos. Impossível de ser derrotado. Eram todos craques, todos humanos, jogavam o que estava nas nossas cabeças, traduziam nossos pensamentos.
Tudo, tudo mesmo, naquele ano de 1982 era especial. Músicas, filmes, uma grande paixão, descobertas, livros, política, um turbilhão. Lembro-me de “Ovo da Serpente”, “Blader Runner”, “E.T.”… nas telas. Na beira da cama, “Grandes Sertões Veredas” (publicado em 1956, ano que nasci), com as últimas páginas a ser lidas, “Zero”, lido e relido. Um encantamento sem fim.
Quando a Copa do Mundo começou na Espanha havia o sentimento de que todos nossas lutas e deleites estariam ali representados e compensados na Seleção do Telê. Aquela anarquia prazerosa e responsável de jogar bola.
Falcão, o ídolo, se multiplicando em todos os lados do campo. Zico a combinar com Sócrates, um gênio articulando com outro gênio como pulverizar os adversários. Éder a irreverência simples. Júnior, Cerezo, Oscar… Aqueles caras éramos nós.
A cada jogo, um desbunde total. Dava gosto de se deixar levar pelo futebol. Não havia limites. Nem sombras. Ditadura nenhuma tiraria a liberdade daquela Seleção, nem cortaria nossas cabeças. O país começava a ficar alegre.
Mas julho chegou e com ele a Itália. Que cazzo aquele tal de Paolo Rossi! Precisava virar o… pra lua justo naquele jogo? Filho da mãe!
Naquele jogo, a maior e mais impactante lembrança vem do gol do Falcão (empate por 2 a 2). Difícil não se emocionar com sua celebração com aquelas veias saltando dos braços querendo amarrar todos nós de alegria. O ídolo do pôster na parede do quarto saía do papel para o abraço real. Quanta felicidade!
Seria a apoteose perfeita, não fosse o Rossi estragar tudo de novo. Doeu na alma seu terceiro gol. Dói ainda, 38 anos depois.
Ao maldito apito final, saíamos da casa de meu pai na minha Guaxupé (MG) ainda de céu claro. Amigos reunidos no botequim da esquina em busca de explicar o inexplicável. Nós que amávamos tanto o futebol nos sentíamos traídos por aquele terceiro gol. Me peguei chorando. O que era lisérgico naqueles tempos voltou ao normal.
Anos depois, já jornalista, tive o privilégio de entrevistar e conviver com a maioria daqueles mágicos jogadores da Copa de 82 e o mestre Telê. Aprendi muito com todos eles. Passei a entender mais de futebol e suas traduções da vida.
Em Lima, capital do Peru, na cobertura das Eliminatórias da Copa de 2002, ainda quando Vanderlei Luxemburgo era o técnico do escrete, encontrei-me com Paulo Roberto Falcão no bar de um hotel portentoso da capital peruana, por volta das 23h.
Conversamos quase tudo de futebol madrugada adentro. Em um dos temas da nossa prosa, ele me contou como perdemos para a Itália na Copa e como foi prazeroso jogar naquela Seleção que havia encantado e ainda encanta o mundo.
Veio a lembrança do pôster na parede no quarto da casa de Guaxupé em julho de 1982. Disse a ele, Falcão, que o futebol vale a pena ser vivido por todos, mesmo os que nunca sofreram a dor de uma derrota como aquela. E disse a ele que chorei.
Hoje, 9 de dezembro, recebo a notícia da morte de Paolo Rossi. Se fiquei triste com o atacante italiano em 1982 fico ainda mais triste neste fim do devastador 2020.

(post publicado em 2020 – em julho de 2022 estamos há 40 anos daquele dia 5 em Barcelona)